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Raquel Serejo Martins

por anandré, em 06.10.21

She’s becoming a lady of a certain age

Recomeça se puderes…
em rigor conselho ou aviso de médico,
e tantas as coisas que, percebo, admito,
não quero, não posso, não sou, ainda sou,
não sou a cor, sou os químicos, a química,
da tinta das canetas com que escrevo,
da tinta com que escondo os brancos cabelos,
sou o carvão do lápis,
sou o fio de cabelo que atravessa a agulha,
sou esta boca que ainda te debulha,
sou três dioptrias,
três dentes chumbados,
três amores amados,
se eu soubesse não tinha casado,
sou um triângulo, sou a geometria,
seno, co-seno e tangente, sou trigonometria,
pudesse eu ser a tua sede, a tua alegria,
sou uma janela sem gelosia,
sou vazia, uma garrafa de plástico,
sou todos os plásticos no mar,
nas entranhas de todos os peixes,
sou com folhas secas a solidão de uma piscina,
se eu te der a mão nada mas não me deixes,
sou o trânsito em hora de ponta,
sou um animal perdido no meio do trânsito,
sou poluição,
sou vento de incêndio,
sou uma inundação, uma decepção,
sou o candeeiro de rua
onde urinam todos os cães da rua,
sou o teu cão no dia em que morreu,
sou o miolo do pão, o caroço da cereja,
na Índia monção, na América furacão
e só de poemas tenho inveja,
sou o barulho do apito do amolador de tesouras,
sou das nuvens uma arcaica lavoura,
sou da lavoura uma vinha velha e vindimada,
sou os pedais da bicicleta do carteiro,
sou o cheiro da relva acabada de cortar,
sou o cheiro a pão acabado de cozer,
sou os pontos das tuas cicatrizes,
sou das meretrizes a tua meretriz
e ainda não comecei a dizer-te o que sou,
sou tudo o que faço,
sou o que desfaço,
sou a faca de aço do rapaz do talho,
sou um velho carvalho, o chão do teu soalho,
sou os teus pés quando descalços
e não me vendo nem te vendo a retalho,
sou o avental ensanguentado onde o rapaz do talho limpa as mãos,
sou Verónica, Madalena, Pavia e Maria,
respeitinho que já tenho idade para ser tua tia
mas com esses sonhos tão grandes nos olhos ainda te fazia.

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Raquel Serejo Martins

por anandré, em 06.10.21

We will replace lost lovers

Não vou perder tempo a procurar amores perdidos,
perdidos na adolescência, na praia,
na floresta, noutros olhos, noutras bocas, noutros corações,
vou ao funeral, levarei flores, as preferidas, três dias de luto,
vou guardar só as boas memórias, as memórias boas,
vou deixar doer até a dor desaparecer,
morrer à míngua como sem água uma planta num vaso,
vou visitar velhos amantes,
jóias sem par, de pôr e tirar,
brincos, botões de punho, anéis de pedras perdidas,
camas onde tenho sempre lugar,
corpos que me protegem em concha,
bocas que beijam os meus defeitos,
vou olhar com olhos em cio todos os habitantes da cidade,
e no olhar mais brilhante encontrar um novo amante,
a quem vou, uma vez mais, chamar amor
e amar, poro a poro, sem pudor e sem decoro,
como um dia amei os meus amores perdidos.

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Raquel Serejo Martins

por anandré, em 06.10.21

Poema verde

Não me peças para amadurecer
que não sou peça fruta,
sou peça de outra engrenagem,
e a vida não é árvore nem fruteira.
Depois ninguém sabe o que é a vida,
a vida vai-se fazendo,
ou vai-se sem mais,
sem chegar a ser inteira.
E eu quero continuar verde
como o mar, verde
como um poema de Lorca, verde
como o verde dos meus olhos, verde
apesar do comprimento dos dias, verde
às vezes de raiva, que com duas patas
também se pode ser cão, verde
por saber o que é a tristeza
e a inutilidade da alegria ao ponto de cortar os pulsos,
mesmo quando temos vários corações a bater fora do corpo.

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Raquel Serejo Martins

por anandré, em 06.10.21

B91CD574-FD11-4C1D-9A64-796806E5DFE0.jpeg

Tem um vestido azul e um vestido cinzento.
Os dois vestidos quase iguais, escuros.
Ele a responder sem olhar para ela, para o vestido,
sem afastar os olhos da televisão,
eternamente o mesmo marido,
está óptimo.
Não está óptima.
Está sobretudo cansada.
E escolhe com indiferença um vestido.

Tem vestido azul e um vestido cinzento.
Os dois vestidos quase iguais, escuros.
Pousa o vestido na cadeira,
amanhã é dia de festa,
regressa à cozinha e lava a loiça,
põe a fruteira no centro da mesa,
imagina flores em vez de frutas,
põe água a ferver para um chá,
chá de tília, jasmim, hibisco, sempre flores,
acabou de jantar e põe na mesa uma caixa de madalenas,
tem sempre madalenas no armário,
come madalenas a diário,
indispensáveis para acompanhar o chá,
bebe muito chá mas não consegue afogar a solidão,
molha sempre as madalenas no chá
e já não procura o tempo perdido.

 

in SILÊNCIO SÁLICO (Poética, 2020)

Fotografia: Way to Fall, de Kirill Oginov

 

Raquel Serejo Martins nasceu em Trás-os-Montes em 1974.

 

 

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